16.7.14

Casa de bonecas com rodas

não me lembro do último hotel em que estive. lembro-me de, há uns anos, ter ido para um hotel num fim de semana que os meus pais ganharam. talvez esse tenha sido o meu último hotel, não me lembro ao certo. mas lembro-me das últimas férias no campismo. aquelas férias que, não o sabia ainda, eram as últimas na nossa casa de bonecas com rodas. lembro-me da primeira vez que a usamos. madrugamos nesse dia. estava na casa dos meus avós e dormi com a cabeça em cima da mesa, na companhia da minha almofada quase inexistente. lembro-me da textura dos sintos de segurança, do padrão dos bancos e do toque das almofadas. lembro-me do sítio onde havia uma linha puxada, de tantas horas que passei a olhar para ela. lembro-me da cortina anti-insetos rebentada nas margens, das nossas almofadas lá encostadas. lembro-me do som do trancar e destrancar das gavetas. e do som do trinco do frigorífico a saltar. lembro-me do som da porta a abrir. e do som da porta a fechar. lembro-me como era difícil levantar a rede da janela à cabeceira lá de cima. ao longo dos anos, devo ter perdido horas da minha vida a tentar fazê-lo. lembro-me dos detalhes daquela lâmpada. e da outra também. lembro-me das paredes cinzentas com pequenos, minúsculos, pontinhos mais escuros. lembro-me das paredes às riscas da casa de banho e do som do autoclismo. lembro-me das barrinhas do nível das águas. lembro-me do calor que tive. e de a seguir pedir à minha mãe uma manta. lembro-me do barulho da loiça dentro dos armários e de ver as árvores a passar pela janela da cozinha. lembro-me da falha que havia na mesa, mesmo ao meu lado. lembro-me da textura da mesa e de como não conseguia pintar os desenhos em condições sem alguma coisa entre a mesa e a folha por causa disso mesmo. e lembro-me dos sons do campismo. lembro-me de, à noite, ficar deitada lá em cima, cortinas corridas, janela aberta, a olhar lá para fora cheia de calor à espera que viesse uma brisa. o som das cigarras e das pessoas a falar. os sons das tendas. das televisões dos outros. e lembro-me dos dias de chuva. ficar fechada dentro da casa das bonecas com rodas o dia todo a ouvir a chuva a cair. tenho saudades dos sons do campismo e tenho saudades da nossa casa das bonecas com rodas e dos mundos que com ela descobrimos. não me lembro do último hotel em que estive, mas há coisas das quais não me esqueço.

1 comentário:

  1. muito amor por estes recortes de tempo. dizem-se memórias, suspiros de vida.

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